A presidente da AARS Cristina Strohschoen dos Santos conversou com Pablo Soledade, ex presidente da Associação dos Arquivistas da Bahia (AABA), sobre o Decreto 10.278/2020 que trata sobre a digitalização e descarte de documentos oficiais. Soledade respondeu as perguntas enviadas por e-mail com um áudio (disponível neste link) e nós também disponibilizamos em texto a seguir.
Além desta entrevista, ampliamos o convite de Soledade para assistir à transmissão ao vivo (live no Youtube) com o tema “Como Digitalizar Documentos com qualidade e segurança com base no recente Decreto 10.278 de 18 de março de 2020“. A live acontecerá no dia 06 de abril (próxima segunda-feira) às 18 horas e 30 minutos.
Pablo Soledade foi presidente da Associação dos Arquivistas da Bahia (AABA) na gestão 2005 – 2007. É arquivista, empresário e consultor máster em digitalização e gestão de documentos físicos e digitais, com 20 anos de atuação. Atualmente cursa Doutorado em Ciência da Informação. Participou, em setembro de 2017, do debate público promovido pelo Conarq sobre o projeto de lei 7920/2017 conhecido como PL da Queima de Arquivos – autorizar a destruição de documentos originais após a digitalização.
Cristina: Pablo, fostes conselheiro do Conselho Nacional de Arquivos e já realizastes uma centena de projetos de digitalização em empresas públicas e privadas. Já ministrastes mais de 30 cursos de Gerenciamento Eletrônico de Documentos – GED em diversos Estados do Brasil, não é mesmo? Qual é o público mais interessado nestes cursos de GED?
Pablo Soledade: Olá Cristina, muito grato pelo seu convite, é uma honra poder colaborar com a AARS, e com a Arquivologia do RS, com a qual eu tenho uma relação de mais de 20 anos, desde a realização do IV Enearq em 2000, quando eu era presidente do D.A. de Arquivologia da UFBA e recebi uma delegação empolgada aqui na Bahia.
Sobre as perguntas, sim, já ministrei dezenas de cursos de GED, digitalização e gestão de documentos digitais em 10 estados brasileiros, estou devendo ao RS… O público do curso é muito variado, mas diria que geralmente em torno de 10% da turma é de arquivistas, número muito pequeno ao meu ver, mas não por falta de convite…, e 30% de bibliotecários. Mas, ressalto que a digitalização de documentos é uma temática bem transversal, necessitando de profissionais de gestão de projetos, preparadores ou auxiliares de higienização e digitalização, digitalizadores, indexadores, além obviamente de arquivistas, bibliotecários, museólogos, a depender do tipo de acervo objeto da contratação. Já precisei de arqueólogos por tratar-se de digitalização de acervo arqueológico. Mas, a maior quantidade de digitalização de documentos dos projetos é de acervo arquivístico, e sinto que o profissional arquivista não tem se preparado para esta demanda, são poucos profissionais especialistas no assunto, em um mercado em franca expansão…
Cristina: Qual o objetivo das empresas privadas ao contratar um projeto de digitalização?
Pablo Soledade: O principal objetivo das empresas infelizmente é o descarte dos documentos originais, pois acreditam que digitalizando tudo, podem jogar fora o papel e utilizar o espaço físico para outras atividades “mais importantes”, isso é um grande erro, pois além de descartarem o original, certas vezes de valor histórico também, irão gastar muito dinheiro digitalizando documentos desnecessários, que já deveriam ter sido descartados por não possuírem valor probatório, informativo ou histórico. Sem falar dos problemas que começam a enfrentar de preservação digital. E agora, com o Decreto 10.278/2020 temo por um cenário de ainda mais projetos apenas nesta direção, sem se preocupar com a gestão documental. Motivos como ampliar o acesso à informação, reduzir o fluxo de papel, dando melhor eficiência aos processos e colorando com o meio ambiente, e evitar o manuseio do original, por seu valor histórico e fragilidade do suporte, deveriam ser mais considerados quando da decisão de digitalizar.
Cristina: O governo federal publicou em 19 de março no DOU dois decretos: o decreto 10.279/2020 sobre a simplificação de documentos e o 10.278/2020 que estabelece técnicas e requisitos para a digitalização de documentos públicos ou privados, “a fim de que os documentos digitalizados produzam os mesmos efeitos legais dos documentos originais”. Ministrastes uma live dia 26 de março sobre o assunto. Poderias comentar conosco?
Pablo Soledade: Os Decretos 10.278 e 10.279 apresentam questões que apenas consolidam intenções que o governo vem tentando implementar há muitos anos. Na verdade, traz sim uma demanda necessária da sociedade, mas infelizmente, em minha opinião distorcida em partes nas Leis 12.682/2012, 13.787/2018 e 13.874/2019.
O Decreto 10.279 faz ajustes pontuais ao Decreto 9.094/2017 e busca a desburocratização das relações entre o público e o particular. Vejo como algo positivo.
Já o decreto 10.278/2020 altera substancialmente o modus operandi da gestão e armazenamento de documentos, trazendo distinções entre o público e o privado.
Como exemplo de alguns pontos negativos do Decreto, eu destaco: 1) Falta de discussão com a sociedade; 2) A Lei só protege os documentos históricos originais; 3) O Decreto não reconhece as resoluções do Conarq, especialmente 25, 31, 39, 43, sendo genérico ou ambíguo ao pontuar que deve seguir as diretrizes do Conarq, já que alguns artigos deste Decreto são opostos a pontos de algumas Resoluções; 4) Não apresenta informações para realização de OCR nos documentos; 5) Não obriga uso de ICP para documentos privados, nem estabelece diretrizes para tal, deixando a cargo dos particulares o estabelecimento das regras; 6) Não aponta nenhum elemento do entendimento de Cadeia de custódia documental; 7) Não estimula que as organizações privadas criem seus planos de classificação ou tabela de temporalidade de documentos, e busquem seguir a Portaria 47 de 14/02/2020 do Arquivo Nacional; 8) Natodigitais e audiovisuais ficaram de fora, até entendo, mas precisam de algum dispositivo que tragam também requisitos técnicos mínimos.
Como pontos positivos, minimizando situações trazidas pela Lei 13.874/2020, eu destaco: 1) Inclusão da Lei 8.159/91; 2) Preserva eliminação mediante a TTD e o que dispõe a lei de arquivos – na área pública; 3) Obrigatoriedade da assinatura digital ICP Brasil para documentos públicos; 4) Estabelecimento de padrões mínimos (metadados e requisitos de qualidade) – ainda que em pouca quantidade; 5) Só digitalizar o necessário (Art. 7°).
Entendo que o Decreto, apesar de melhorar a Lei 13.874, ainda deixa muitas brechas que possibilitam a insegurança jurídica nas relações entre os entes públicos, a iniciativa privada e a sociedade em geral.
Entendo que o momento atual exige um forte protagonismo dos profissionais arquivistas, no sentido de apontar caminhos técnicos que garantam a qualidade dos processos de digitalização de documentos, e que deixe claro que só é possível a realização de descarte de documentos originais seguindo este decreto se as instituições tanto públicas quanto privadas tenham plenamente amadurecidos seus processos internos de gestão documental e detenham uma infraestrutura necessária para garantia da preservação digital e longevidade da guarda. É fundamental lembrar que não se trata apenas de um backup…
Precisamos também: fortalecer a gestão documental; as Comissões Permanente de Avaliação de Documentos (CPAD) – ver decreto 4.073/2002 e 10.148/2020; melhorar a formação acadêmica dos profissionais; e estudar profundamente o universo digital, sua gestão e preservação.
Entendo que ficam grandes desafios, especialmente o da Preservação digital de longo prazo e a da garantia da autenticidade (segurança jurídica – identidade e integridade).
Um abraço a você, aos diretores e todos os associados da AARS, e também a todos os arquivistas e profissionais interessados no assunto, especialmente os do RS e fico à disposição para outras ações!